CIDADE DE UM HOMEM SÓ

"Você precisa terminar o que começa", disse a jovem que sentou ao seu lado no ônibus, após alguns minutos de flerte a distância. Antes que pudesse fazer qualquer pergunta, ela continuou: "Há muita gente sofrendo com sua falta de empenho nas suas poesias, nos seus textos. Cada personagem, cada história, cada ambiente que você cria em seus escritos passam a existir num mundo paralelo a esse. Quanto você não termina o que escreve, eles ficam perdidos nesse mundo, ficam presos para sempre lá". Então, ele riu e imaginou que tipo de droga aquela menina havia usado. Levantou de onde estava, pediu parada. Antes de descer do ônibus, só por curiosidade, olhou para trás para se despedir da moça, mas, para sua surpresa, ela já não estava mais no ônibus.
Na ânsia de fugir da menina, desceu duas paradas antes da sua. Teve que ir caminhando o restante do trajeto. Naquela noite fria, de chuva fina e névoa densa, aquelas palavras da menina do ônibus começaram a ecoar em sua mente. "Como ela sabia que eu escrevo e que guardo meus textos inacabados? E como sabia que tenho tantos textos que ainda não terminei?" Aquelas perguntas foram lhe inquietando. Apressou o passo para chegar em casa logo, pois estava determinado a concluir todos os seus escritos inacabados.
Ao chegar em casa, porém, não conseguiu encontrar nada. Procurou por horas em seu quarto e em todo o resto da casa, até que a campanhia tocou. Um velhinho pedia para entrar insistentemente, mesmo diante de suas negativas. Resolveu ceder e ouvir o velho. "Não adianta procurar nenhum escrito; você não é escritor. Você é um simples bancário", disse o velho. "Como sabe que estou procurando? Como sabe quem sou?"... o velho interrmpeu aquela que poderia ser uma longa lista de perguntas. "Eu sou o relojoeiro. Eu comando este mundo, organizo, administro tudo o que acontece. Eu sei tudo o que se passa por aqui. Sei que você encontrou uma menina no ônibus, sei o que ela lhe falou; mas, cuidado. Tudo que ela lhe falou é mentira. Ela é uma nova criação do Mestre, chama-se Linfda, filha de Mantus, um demônio etrusco. Ela está desestabilizando nosso mundo".
Ainda sem saber em quem acreditar, deu-se conta do que acabara de ouvir. "É isso mesmo, meu jovem. Eu, você e Linfda, assim como tudo que você vê, ouve e sente neste mundo, são criações inacabadas do Mestre. Tudo que não tem fim, vem parar neste lugar. Se você olhar ao redor, vai perceber que sua casa está pela metade, que as ruas levam a lugares dos quais jamais voltamos, mas sempre estamos indo para lá, e sempre acordamos, no dia seguinte, no lugar de onde partimos no dia anterior. Esta é a nossa prisão. Na verdade, não existimos; somos idéias inacabadas, só isso.
Então, o velho relojoeiro foi embora e deixou o rapaz ali, sozinho, sentado no alpendre de sua casa, olhando aquela noite fria e de névoa densa, igual a todas as outras noites de sua vida. Enquanto sua história não fosse concluída, ele não descansaria.
fonte: O Antagonista